sexta-feira, 7 de junho de 2013

Y-Juca Pirama (aquele que será morto ou aquele que está próximo de morrer)

E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.
Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós. 
Lucas 22:19-20


Neste feriadão de Corpus Christi assisti pela TV o pronunciamento de um bispo católico aqui em Recife que dizia da importância da celebração ritual de honrar o Corpo de Cristo que nos é dado a comer, como forma de participarmos de Sua Graça e Sacrifício. Falava o bispo de algo que eu já imaginava fazer parte do passado da teologia católica: a "transubstanciação"; o momento sublime em que a ostia deixa de ser um simples pão e se transforma no Corpo de Cristo, crença literalmente reforçada pelo bispo.

Teologias à parte, invadiu-me a mente a lembrança do poema indianista Y-Juca Pirama, do decantado poeta  maranhense Gonçalves Dias, publicado no seu livro "Últimos Cantos", entre os anos de 1848 a 1851.

De certo, o poeta não tinha em mente as semelhanças antropofágicas entre a crença nativa e o catolicismo romano, antes debruçava-se sobre a busca de uma identidade nacional tão solapada pelo colonialismo português, elegendo um "herói indígena" remanescente das lutas genocidas como emblema de uma ética nacional cavaleiresca. Cabe notar aqui que semelhanças (e existem outras tantas) entre tais crenças foram de pronto percebidas pelo colonizador e utilizadas com maestria pelo clero missionário como facilitador para adentrar o mundo e a alma indígena.

Crescido e educado no Maranhão, desde cedo tive contato com a obra de Gonçalves Dias, e particularmente com este poema, em que tive tantas vezes de resumir e analisar durante minha vida escolar. Engraçado como sendo um povo sem memória, aprendemos uma pronúncia ridiculamente aportuguesada para o título do poema. Só mais tarde, em contato estreito com línguas do tronco tupi pude rir de mim mesmo e de meus professores de literatura. 

Posteriormente, tive o privilégio de, por conta do meu trabalho, conviver diariamente com diversas culturas indígenas, e de ter animadas conversas ao pé de fogueiras com velhos índios, ou  remanescentes do contato com a sociedade nacional, ou os que ainda traziam na memória de sua história oral os relatos da época que suas etnias praticavam a antropofagia ritual. Pude assim perceber as diversas configurações em que tais acontecimentos se davam.

Voltando ao poema, a quem nunca o leu aconselho a leitura (http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/GoncalvesDias/IJucaPirama.htm). De todo modo, sem querer aqui fazer uma análise literária sobre a construção do mesmo, resumo que o poema está configurado como uma narrativa de um ancião Timbira, que nos moldes da transmissão oral do conhecimento, evoca a história do guerreiro Tupi e seu velho pai, como exemplo de bravura a ser imitada pela platéia “kurumin” presente e atenta.

Conta de um velho índio Tupi acompanhado de seu filho que erravam por aquelas paragens interioranas, fugidos do extermínio e genocídio português que assolavam os grupos Tupi do litoral. Cansado e faminto, o velho índio, já cego, é deixado a descansar sob um arvoredo, enquanto seu jovem filho parte em busca de alimento e abrigo. O jovem índio, longe do seu território tradicional, é então capturado por bravos guerreiros Timbira, e levado a aldeia inimiga, onde por costume, deverá ser devorado. 

O “script”, de conhecimento comum, não poderia ser evitado.  A honra de um guerreiro e a sua bravura e destemor frente ao inimigo eram neste momento postos à prova definitiva.  Esse processo poderia durar dias, ou mesmo meses, até que o dia para a matança ritual fosse determinado. Quando enfim, o guerreiro capturado seria amarrado pelos braços a dois mourões no centro da aldeia e após um ritual que envolvia provocações, insultos e vangloriações  de parte a parte, o bravo capturado seria morto com um golpe certeiro de borduna em sua nuca,  após o que seu corpo seria repartido entre todos e consumido. A crença comum era de que a bravura do guerreiro devorado seria partilhada por todos os presentes.

Diante de seus captores o jovem guerreiro Tupi entoa seu canto de morte:

"Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi: 
Sou filho das selvas, 
Nas selvas cresci; 
Guerreiros, descendo 
Da tribo tupi.
Da tribo pujante, 
Que agora anda errante 
Por fado inconstante, 
Guerreiros, nasci; 
Sou bravo, sou forte, 
Sou filho do Norte; 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi..."

Mas em lágrimas menciona a figura do velho Pai que deixara sozinho na mata, propondo em juramento se fazer escravo dos Timbira em favor de salvar a vida do velho moribundo. Para surpresa de todos os guerreiros, o chefe Timbira manda soltar o prisioneiro, entendo seu choro e súplica como um ato de covardia do qual não o faria digno de ser devorado pelos bravos.

Os Timbira, perplexos, soltaram o prisioneiro, desdenhando de sua bravura. Humilhado, o jovem guerreiro retorna ao seu pai. O velho, já há muito tempo sozinho, abraçou ao filho querido, mas logo sentindo o cheiro da pintura corporal que adornava o filho, de pronto entendeu o que havia ocorrido. De certo, ninguém poderia escapar do aprisionamento inimigo sem ferimentos.

Ao indagar ao filho o ocorrido, ficou revoltado e envergonhado com a sua covardia, e impeli-o a retornar à aldeia Timbira. O velho índio, cego e frágil, levou o filho de volta aos Timbira. Diante dos guerreiros inimigos o velho pai devolve o seu amado filho ao sacrifício de honra. Os Timbira rejeitam a oferta, desdenhando mais uma vez da bravura Tupi. 

O velho pai, ao ouvir do choro entoado pelo filho passa a amaldiçoa-lo e o despreza diante de todos!
Neste momento o jovem Tupi, solta seu brado de guerra, e passa a pelejar bravamente com todos os guerreiros Timbira, fazendo tombar a muitos pela força de sua destreza em batalha. Um brado altivo partindo do chefe Timbira faz cessar o combate:

"- Basta! Clama o chefe dos Timbiras, 
- Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, 
E para o sacrifício é mister forças. -"

O jovem guerreiro cessa o combate cai nos braços do pai.

"O guerreiro parou, caiu nos braços 
Do velho pai, que o cinge contra o peito, 
Com lágrimas de júbilo bradando: 
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, 
"Corram livres as lágrimas que choro, 
"Estas lágrimas, sim, que não desonram"

A narrativa do ancião Timbira termina com a lição final de ética e honra a ser seguida pelos "kurumin":

"Um velho Timbira, coberto de glória, 
Guardou a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi! 
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro 
Cantar prisioneiro 
Seu canto de morte, que nunca esqueci: 
Valente, como era, chorou sem ter pejo; 
Parece que o vejo, 
Que o tenho nest’hora diante de mi.
"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! 
Pois não, era um bravo; 
Valente e brioso, como ele, não vi! 
E à fé que vos digo: parece-me encanto 
Que quem chorou tanto, 
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória, 
Guardava a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi. 
E à noite nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Tornava prudente: "Meninos, eu vi"

O que me comove nesta história? Digo: a ética e a honra. Sem isso não nos é possível transitar neste mundo sem nos diferenciarmos. Este exemplo sempre me traz à memória o sacrifício de Jesus. Para nós, os que cremos, nos diz muito de Quem é Aquele que nos amou até a morte. E morte de cruz!

Jesus, em sua humanidade, e sabendo desde sempre qual seria o seu necessário destino (nosso Y-Juca Pirama), sentiu duramente o peso de manter-se íntegro ao propósito divino. Não foi sem dor que brandou em oração: "Pai, se possível passa de mim esse cálice"; e na cruz bradou em alto e bom som: "Deus meu, Deus meu... por que me desamparaste".

Felizmente, para nós, Ele resistiu bravamente ao seu destino! E hoje, comemos do Pão e bebemos do Cálice, não porque estes elementos alterem a sua natureza, mas "Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha." - I Corintios 11:26.

Essa é a nossa Esperança!










terça-feira, 28 de maio de 2013

Graça e perdão, por que não?


 "Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus." Romanos 3:24

"e havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário, removeu-o do meio de nós, cravando-o na cruz;"  Colossenses 2:14




 Você já deveu dinheiro a alguém? Ou um favor? Ou algo muito valioso? Então você conhece aquela sensação incômoda que se sente ao se aproximar dessa pessoa! É esquisito, não é?

Alguém que é seu amigo de verdade, mas que por uma razão circunstancial, no caso sua dívida pessoal com ela, provoca em você uma compulsão pelo distanciamento. Sempre que você a vê, ou ouvir falar nela, brota esta sensação esquisita que tanto nos angustia. Até que possamos saldar a dívida estaremos divididos em dois mundos: o desejo de se relacionar com a pessoa de quem você tanto gosta; e a sensação de que algo muito errado aconteceu entre vocês, e portanto, o relacionamento de outrora já não é mais o mesmo.

Ficamos com a certeza de que nosso o amigo ou amiga está sempre pensando em o quanto lhe devemos. Como humanos que somos, essa é uma certeza plausível e não temos como  raciocinar de outra forma. Não somos tão livre assim!

Tudo se baseia na convicção da dívida, na certeza dos impedimentos que ela traz, e na nossa incapacidade de crer que podemos ser a aceitos plenamente sem que a dívida seja por nós quitada.

Agora pense em Deus e nestes três pontos básicos da nossa estrutura mental (almática).

A certeza da dívida é algo que nos fustiga diuturnamente, sejamos ou não ligados à alguma convicção religiosa("religare"). Sublimamos, racionalizamos, jogamos para baixo do no nosso tapete psíquico, e cometemos o auto-engano de desacreditar até mesmo que ela exista; mas não tem jeito! Uma hora qualquer sempre temos que encará-la.

Como então nossa dívida é impagável, vem a desconforto em relação àquele que por tantas vezes dizemos em palavras ser o nosso melhor amigo. Tanto que nas horas, cada vez mais minutos, a sós com Ele, se instala um silêncio sepulcral, ou uma verborragia virtual da nossa parte, que apenas preenche os momentos dessa relação.

 Ficamos sempre com aquela sensação de que temos de algum modo que contribuir com nossos esforços para, se não pagar tudo, pelo menos possamos compensar um pouco nossa dívida impagável. Proliferam então os mecanismos de auto-engano, que nos levam às tentativas de burlar a dívida; às  esquisitices performáticas e ritualísticas compensatórias; aos aprisionamentos xamânicos da "religare"; até à auto-comiseração e ao adoecimento permanente da alma.

Não cremos que somos aceitos por Deus assim como somos. Não cremos no perdão unilateral. Fomos ao longo da vida construindo nossas relações baseadas em um sistema de escambo. E ninguém nos convence que Deus, pelo menos nesse aspecto, não seja tão humano como nós mesmos. Deus tem que pensar de acordo com nossas categorias humanas!

Aqui está onde a Graça e o Perdão falham!!!

Não aceitamos algo assim tão gratuitamente. Deve ser alguma pegadinha cósmica! Essa história de morte na cruz não tem lógica alguma. A dívida é nossa, nós temos que pagá-la de algum jeito. Se o próprio "Criador" a pagar por nós, nossa dívida só crescerá. Não. Essa lógica não satisfaz o meu senso de justiça!
De algum modo, mesmo os que cremos, continuamos a buscar uma maneira de satisfazer a nossa justiça-própria.

É justamente quando chegamos aqui que estaremos decaindo da Graça.


Pense nisso!

sábado, 16 de março de 2013

E a vida o quê é? Diga lá mermão...

"Faça uma lista dos sonhos que tinha,
e quantos deles deixou de sonhar."
A Lista - Oswaldo Montenegro

A existência nos impõe escolhas que se perdem no tempo. Algumas impetuosas, tempestivas; outras calculadas, pensadas, pesadas. Umas de perspectiva estreita; outras de uma amplidão e conexões imensuráveis, que nos levam a ainda outras tantas inimagináveis.

Seja como for, acabamos escravos do Tempo. Tempo que não volta; oportunidades que se vão pra sempre, ou se abrem em novas formas. No meio, fica a sensação de coisas não cumpridas, mal-resolvidas, mal-começadas ou mal-terminadas.

A ansiedade, o pânico, o medo e a insegurança, nos são companhia diária. Estabelecem-se limites, prazos, altura, largura e profundidade para a felicidade possível. E o Tempo avança! Não há controle sobre Ele e Seus efeitos: o corpo cobra um alto preço, e o espírito divaga entre o que é, o que seria, e o que ainda poderá ser possível.


Não há saída para essa encruzilhada. Não há com abortar o existir; ou como pular fora da vida pelo livre arbítrio. O suicida pode arbitrar a esse respeito, mas não é fruto de sua livre vontade o ato final. Temos que continuar até o dia determinado.

Uns se vão antes, "fora do combinado". Outros bem mais tarde, "dentro do combinado", como costumava  dizer o poeta sertanejo Rolando Boldrin.

Ninguém controla o Tempo. E acumula-se um vazio de significados, sonhos arquivados e projetos inconclusos. Até que chegue a hora de cada um, permanece a sensação desse vazio abismal. Não sabemos o tamanho do vazio da alma humana.

A vida como a conhecemos, atrelada ao Tempo/Espaço, é certamente a maior expressão de Sabedoria do Criador.

Só uma vida assim do jeito que é, pode nos conduzir ao aperfeiçoamento. Mas tudo isso só faz sentido na perspectiva da Eternidade. Por isso o alerta do Apóstolo Paulo:

"Se a nossa esperança em Cristo se resume apenas a esta vida, somos os mais infelizes dos homens."

Carpe diem!

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